(Este
texto não foi escrito ao abrigo do Acordo Ortográfico)
A provação que o calor de verão impõe
aos animais e plantas do PNSAC é imensa e sublinhada pelas condições orográficas,
pedológicas e climáticas. No entanto, os extremos de desidratação e os
pináculos de temperatura são meramente uma interpretação humana, sendo que a
Vida segue estoicamente o seu percurso pelas ásperas encostas e planícies do
parque.
A primavera aqui é anunciada cedo pelo
zumbido dos insectos, ainda sob o tamborilar da chuva na dura folhagem desta
estepe arbustiva dominada por carrascos e aroeiras. Trata-se de um paraíso para
as aves, desde as andorinhas aos estorninhos e às perdizes, e aqui nidifica uma
infinidade de espécies, incluindo o grande corvo e localmente a garça-real. Por
vezes observa-se ainda a leveza do voo da águia-cobreira ou a silhueta
arredondada da icónica gralha-de-bico-vermelho. Estas últimas enchem o ar com
os chilreios típicos, e durante a noite podem escutar-se os sons característicos
das rapinas nocturnas.
Chegado o mês de Setembro, quando o
jugo do sol sobre o solo ressequido começa a abrandar e as preciosas
águias-calçadas iniciam o rumo aos seus quartéis de inverno em África, logo surgem
nos trilhos do parque as ímpares flores da espécie de açafrão mais temporã.
Esta eloquente planta, denominada Colchicum
montanum (ou Merendera montana),
na qual apenas a flor desponta acima da superfície do solo, dá uma eloquente
nota de cor, suavidade e requinte à paisagem agreste dominada por calcários.
É precisamente sob os pés da influência humana que é esculpido o berço destas flores, das orquídeas e das muitas aves destes montes coalhados de arbustos, cujo potencial só é concretizado com a abertura de caminhos e clareiras. É ainda necessário o estabelecimento de grandes espaços abertos, especialmente pela acção de pastoreio dos rebanhos, para a manutenção de habitat adequado para a perdiz-vermelha, o sumptuoso bufo-real, a gralha-de-bico-vermelho e o andorinhão-real e muitas outras aves.
Assim, ao caminharem pela montanha, os
pastores ou passeantes estão directamente a beneficiar a vida selvagem do
parque, sendo estes literalmente os passos da conservação, no sentido mais
abrangente da palavra. De facto, estas práticas definem, a médio e longo prazo,
o interesse das gerações pelo património natural da região, o ordenamento dos
territórios, a integração turística e a valorização do conhecimento e dos
produtos agrícolas mais típicos.
É aqui conveniente fazer uma pequena
resenha histórica relacionada com a importância da intervenção humana para diversidade
e riqueza e diversidade da fauna e flora. Durante todo o período pleistoceno e
até há cerca de 10 mil anos, o nosso planeta foi habitado por elefantes
(incluindo os mamutes) ou mastodontes de diversas famílias, assim como
rinocerontes e bisontes e seus parentes próximos ou seus equivalentes
ecológicos. Estes animais abriam caminhos e clareiras, e o desbastar da
vegetação tinha ainda outra consequência positiva: a dinamização da vegetação
que, com os seus tenros rebentos fornece a alimentação ideal a animais mais
pequenos como veados e corços.
E, por sua vez, estas espécies beneficiavam
outras ainda mais pequenas, como coelhos e lebres, os quais comem apenas os
gomos mais suculentos, sendo virtualmente possível que estes pequenos animais
sucumbam à fome em áreas de vegetação alta mas fibrosa e pouco nutritiva. Por
esta razão é que é frequente ver estes animais alimentarem-se à beira e no meio
dos caminhos, à margem dos matagais, uma vez que a passagem de carros e pessoas
destrói a vegetação e isso faz com que apareçam rebentos viçosos.
A acção benéfica das cabras e outros
ruminantes é ainda aparatosamente benéfica no que concerne ao favorecimento de
urze e vegetação rasteira, dando origem a prados floridos que são o paraíso das
abelhas e outros insectos. Em épocas remotas, quando a fauna abundava, era
neste cenário idílico que a águia-real caçava, incluindo a sua acção altamente
reguladora de limitar os corvos, gralhas, raposas e crias de javali. De facto, sem
o controle das águias, estas espécies abundam em demasia, levando à dizimação das
ninhadas de ovos de perdiz.
Por outro lado, o início do período
holoceno foi marcado pelo domínio incontrolado dos humanos sobre a natureza, assim
como o consequente desaparecimento das espécies de reprodução mais lenta, ou
seja ocorreu uma extinção em massa especialmente na Eurásia Holártica e em
ambas as Américas. No entanto, por muito catastrófica que a situação pareça, os
humanos em parte substituíram a mega-fauna, abrindo caminhos e controlando as
florestas. Participaram assim na orientação evolutiva/transformadora de muitas
espécies e contribuíram na criação de outras, como é o caso da águia-imperial-ibérica.
A ironia é que nas últimas décadas
estamos a assistir ao desaparecimento ou regressão de muitas espécies, como é o
caso da majestosa águia-real e da veloz e belíssima águia-de-Bonelli, as quais
há apenas algumas décadas sulcaram os céus do parque. A conservação genuína e
sustentada de espécies, seja no caso das águias, dos açafrões ou dos lobos,
passa incontornavelmente pela acção activa dos humanos. Neste aspecto, muito a
humanidade tem a agradecer aos passeantes de montanha, às gerações de
agricultores e pastores.
Proteger as águias e os lobos
significa proteger o modo de vida que, nas gerações de pastores e caçadores,
trouxe sustentadamente estas espécies fabulosas até aos dias actuais. No caso
do lobo, as populações locais são muito mais que defensoras destes animais, uma
vez que partilham o espaço e os limitados recursos como amigos e irmãos
partilham uma refeição. O caminho na preservação da natureza é pois aquele que
envolve em primeiro plano as populações locais.
As gerações vindouras agradecer-nos-ão
tudo o que fizermos para conservar o património rural e natural e, seria infinitamente
proveitoso se, com uma gestão perfeita da caça, no futuro pudéssemos voltar a
apreciar o arrepiante voo picado águia-de-bonelli ou os incríveis saltos do
lince protegido pelas estevas e outros arbustos que coroam os tapetes floridos
na primavera do parque.
O homem pertence à Natureza,
e precisa dela para o seu equilíbrio físico e psicológico. Acima de tudo, a
todo o custo, devemos preservar o PLANETA AZUL, como lhe chamaram os primeiros
astronautas.
A Terra é tanto quanto se sabe o único planeta onde existe vida, e esta nasceu, segundo algumas culturas índias, do casamento do sol com o mar. Este modo tão subtil e romântico de descrever o milagre da vida, é fruto de uma sensibilidade muito mais apurada que a do homem branco, e está em total acordo com a ciência moderna que, em linhas gerais, pensa que a vida teve como berço o mar, e como fonte de energia o sol.
Está na nossa mão e na nossa inteligência o futuro de uma aventura que teve início há 3500 milhões de anos.
José Abel Carvalho
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